quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Aleppo, Damasco e Palmyra: bem mais do que a hospitalidade síria na entrada ao mundo árabe


Guerras, conflitos e problemas políticos atuais à parte, a Síria tem bastante coisa interessante para oferecer a um viajante. Muitos mais do que especificamente um ponto turístico, o conjunto de construções históricas e a atmosfera de uma região que abrigou antigas civilizações dão um tom exótico ao lugar. A simpatia e hospitalidade do povo local (coisa que eu mais li nos guias antes de viajar) misturada com cultura, costumes e religião bem diferentes da realidade que nós estamos acostumados também contribuem para uma viagem bastante curiosa por lá.
No mochilão que fiz entre setembro e outubro de 2011, a Síria foi o ponto de entrada ao verdadeiro mundo árabe, islâmico, depois de passar por um “ensaio” na Turquia. Foram três noites no país, entre Aleppo, Damasco e Palmyra, o que incluiu visita a diversas mesquitas, mercados típicos, ruínas históricas e, claro, substantivos cotidianos dos sírios, como narguilé, chá, esfiha, buzina, Alá...

Vindo da Turquia, cruzamos a fronteira em Bal al-Hawa, saindo da cidade turca de Antakya rumo a Aleppo, viagem que durou umas 4 horas. É possível fazer o trajeto de ônibus, mas pelo horário acabamos pegando um táxi compartilhado, o que acabou saindo muito mais caro. A vantagem é que o mais caro na Síria não é tanto assim, já que as coisas são absurdamente baratas por lá: 80 pounds sírios equivalem a 1 euro.
Aleppo - Chegando em Aleppo, a primeira impressão é de caos total. Tudo cinza, poeira, buzinas, trânsito maluco, todas as placas naqueles rabiscos que eles chamam de letras e um bando de Mohamed falando lalalala com você. Mas aos poucos você vai se acostumando. O segredo é não se estressar, o que confesso que às vezes é difícil. Ao mesmo tempo que existem muitas pessoas querendo te ajudar e agradar, existem outras (geralmente as com pouca formação e educação, como alguns taxistas e prestadores de serviço em geral) querendo te passar a perna, ganhar dinheiro em cima e coisas do tipo. Nada tão ruim como no Egito, o pior lugar nesse ponto, mas ainda assim é bom sempre ficar esperto.

Ficamos no hotel Kaser Alandaloss, bem central, quarto duplo, mas sem banheiro, por 250 pounds sírios (4 euros) a diária por pessoa. Pelo preço, não dá pra reclamar das condições. Bem aceitáveis.
Mas o que tem pra fazer em Aleppo? Vamos lá. É uma cidade bastante conservadora, com mais mulheres todas de preto com aquelas burcas que só não cobrem os olhos do que em qualquer outra das principais cidades da Síria. As principais atrações são: o Souq al-Attarine, o Great Mosque e a Citadel, todas elas localizadas na Old City e facilmente acessíveis a pé.
O Souq nada mais é do que um mercado ou bazar gigante, formado por um labirinto de pequenas ruelas e becos estreitos com diversas lojinhas de produtos típicos. Vende-se de tudo que se pode imaginar: roupas, perfumes, cosméticos, joias e bijuterias, comidas, vários temperos e sementes. O cheiro do local é algo inconfundível. O Great Mosque é a principal mesquita da cidade, onde vale a pena entrar e relaxar um pouco no carpete observando os muçulmanos cultuarem Alá. Já a Citadel é um imenso forte, que está boa parte em ruínas, localizado no topo de uma colina, de onde se pode ter uma bela vista de toda a cidade velha.

Outra área interessante é o distrito cristão de Al-Jdeida, onde ficam várias igrejas, lojas e bons restaurantes. Dei uma volta por lá à noite e não vi muito movimento de bares, mas uma boa opção é o restaurante Al-Mashrabia, com todas aquelas comidas árabes tradicionais, como quibe cru, tabule, hummus, baba ganoush, etc...
Saindo de Aleppo pegamos um ônibus para Damasco, pela empresa Al-Eman (200 pounds sírios), em um trajeto de 5 horas. Demos sorte, porque pegamos o primeiro busão que vimos pela frente e era bom. Aliás, esta é uma missão que exige bastante paciência no Oriente Médio. Quando entramos na rodoviária fomos praticamente atacados por um monte de gente oferecendo passagens e falando um monte de coisa que não dá para entender nada. Cada um, claro, querendo vender seu peixe (sua passagem, no caso), mas com condições pouco confiáveis.

Damasco - Chegamos à capital síria e fomos para o Al-Rabie Hotel, considerado o melhor da região pelos mochileiros, localizado em um bom ponto, entre a cidade velha e a nova. Tirando o fato que tinha um gato morto e sangrando no quarto no roof que iríamos ficar (sim, iríamos dormir no roof, uma espécie de sótão, que é bem mais barato. Afinal, mochilismo é isso), de resto o local até que era tranquilo. Como preferimos não dividir o aposento com o felino, acabamos ficando em um quarto compartilhado normal, sem banheiro, por 350 pounds sírios a diária.
Tida como a capital ainda habitada mais antiga do mundo, Damasco não se difere muito de Aleppo em sua distribuição geográfica. É na Old City onde também ficam os principais pontos de interesse, como a Mesquita Umayyad, o Souq al-Hamidiyya e o Palácio Azem. A mesquita é uma das mais sagradas do mundo islâmico, vale estar lá para observar no horário de uma das cinco rezas diárias que os muçulmanos são obrigados a fazer. Ao lado de um dos muros da Umayyad está o mausoléu de Saladin, um dos heróis da história árabe. Pelas ruelas do souq, onde se encontra de tudo nas lojinhas, desfilam desde típicos senhores árabes com véu na cabeça e mulheres todas cobertas de preto até jovens mais modernos vestindo roupas de marca. Claro que existem diversas outras mesquitas, templos, museus, madrassas (escolas) e coisas do tipo por ali, mas ai vaí do interesse de cada um para ficar entrando em todos.
Ainda dentro das muralhas que circundam a cidade velha, existe o distrito cristão, na área entre os portões de Bab Touma e Bab ash-Sharqi, onde o cenário é um pouco mais liberal, com a presença de alguns barzinhos e jovens aproveitando a vida noturna. Por ali, perto da conhecida Via Recta (Straight Street) ficam algumas baladas (acreditem, baladas na Síria) como o Marmar, o Zodiac e o La Serail, que dizem bombar nos finais de semana. Porém, é bom checar se realmente enche nas sextas e sábados, porque nos dias da semana que estivemos lá, o negócio era bem devagar. Mas, pelo menos cerveja, entre elas a Barada Beer, produzida na Síria mesmo, não é difícil de comprar, mas só em lugares específicos. Na maioria dos bares, além de ser uma raridade achar uma mulher, os caras ficam a noite toda fumando narguilé e tomando.... chá, fanta laranja, suco !?! (vai entender).
Quanto à comida, mesmo para quem tem frescura, encontrar restaurantes com pratos “normais”, servindo frango e carne não é problema. Além disso, obviamente, esfihas a preço baixíssimo fazem a alegria de qualquer mochileiro. Encontramos por lá o “verdadeiro Habib`s”, que vendia esfihas a 10 pounds sírios (uns 15 centavos de euro).

Palmyra - De Damasco, fizemos uma day-trip, um bate e volta no mesmo dia, para Palmyra. É só chegar na rodoviária Harasta/Pulmlman Garage (atenção, existem outras na cidade), “enfrentar” o enxame de agradáveis vendedores de passagem, escolher uma empresa que pareça ser mais confiável e arriscar. Pagamos 150 pounds sírios na ida e 200 na volta, e são 3 horas de viagem cada trecho. Palmyra não tem exatamente uma rodoviária, então os ônibus podem parar em locais diferentes. No nosso caso, tivemos ainda que pegar um táxi para chegar ao centro.
Como já relatei no post anterior, eu e o Chuck éramos literalmente os únicos turistas em Palmyra naquele dia, os primeiros nos últimos três meses, devido aos conflitos no país. Visitamos tranquilamente as ruínas (um dos inúmeros patrimônios mundiais da Unesco) localizadas no deserto, construídas há milhares de anos, em uma data não precisa, mas que fez parte da história da Mesopotâmia e do Império Romano, por exemplo. Durante o tempo que andamos por entre as gigantes pilastras, apenas camelos, alguns beduínos e uma tempestade de areia cruzaram nossos caminhos. Tem gente que prefere pernoitar na cidade para ver o nascer ou o pôr do sol, mas nosso cronograma de viagem era apertado para isso. Voltando a Damasco, o próximo destino seria Beirute, a capital do Líbano.
Além dessas cidades que visitamos, existem outros highlights na Síria, como Hama, Homs, o Crac des Chevaliers, Bosra e Maloula, que acabamos não indo por falta de tempo.
Viajar para a Síria não parece das coisas mais normais do mundo, ainda mais durante um período de guerra. Mas o objetivo era esse mesmo. É aquela coisa: não é exatamente o lugar para se visitar se você está procurando baladas, diversão ou relaxar em um resort. É um destino exótico, assim como praticamente todo o Oriente Médio. Mas é um lugar sensacional se você busca viver uma realidade distinta daquela que nós estamos acostumados. Costumes, pensamentos, estilo de vida, língua, religião, culinária, enfim, tudo bem diferente. E é isso que me instigava neste mochilão, aprender com novas experiências e enriquecer culturalmente.

Legendas: 1) Ruínas de Palmyra - 2) Souq al-Attarine, em Aleppo - 3) Muçulmanos rezando dentro do Great Mosque, em Aleppo - 4) Trânsito caótico nas ruas de Aleppo - 5) Western Temple Gate, no final do Souq al-Hamidiyya, em Damasco - 4) Ruínas de Palmyra completamente desertas, apenas com alguns camelos

domingo, 11 de dezembro de 2011

Síria: turismo e vida normal em um país que sofre com conflitos e revolta contra Bashar al-Assad


Dos sete países visitados no Oriente Médio, a Síria com certeza foi o que me criou mais expectativa. A tão falada hospitalidade da população local, as ruínas de Palmyra, os souqs de Aleppo e as mesquitas da capital Damasco são os principais motivos da visita de qualquer um. No entanto, desta vez, algo nem tão admirável prendia minha atenção: os conflitos e a violência no país por causa da revolta de civis contra o governo ditatorial de Bashar al-Assad.
Pensei muito antes de ir, cogitei tirar a Síria do roteiro cada vez que eu via na TV as cenas de guerra e os milhares de mortos, mas a cada pequena informação positiva que eu via tinha mais certeza que deveria ir. Depois de ir e de viver toda a experiência, fica a lição de que valeu muito a pena. Apesar de tanques de guerra, metralhadoras e exército nas ruas, o risco foi mínimo. Eu diria que quase nenhum. Me senti muito mais seguro por lá do que em muitos lugares de São Paulo.

Foram três noites na Síria, entre Aleppo, Damasco e Palmyra, no final de setembro de 2011. Pelo bom senso, não fomos para Homs e nem Hama, as cidades onde estão acontecendo os maiores protestos. Durante esse tempo, além de mim e do Chuck, parceirasso deste mochilão, entre estrangeiros, encontramos apenas um casal de antipodeans (australiana e neozelandês) por lá. Acho que éramos os únicos turistas naquele momento no país todo, o que comprova que o cenário tenso afasta bastante as pessoas e desencoraja os viajantes. Inúmeras vezes fomos parados nas ruas por simpáticos sírios, desde crianças até velhinhos, impressionados e satisfeitos com a presença de estrangeiros por lá. Não foram poucos os “Welcome to Syria” que ouvimos.

Pode parecer loucura visitar um país em guerra, mas foi uma das melhores experiências que já tive. Claro que a situação por lá não é boa, mas a impressão que se tem vendo apenas as notícias da mídia internacional é muito pior. Na verdade, a vida segue bem normal para a grande maioria das pessoas, as cidades funcionam normalmente, sem qualquer sinal de caos, pelo menos em Damasco e Aleppo. O que, de fato, está bastante afetado é o turismo. Palmyra, onde ficam as ruínas romanas que são a atração mais visitada do país, é uma cidade fantasma atualmente. Quando estivemos lá, além de nós, só tinham camelos e alguns beduínos. Chegamos a pegar um táxi de graça, depois de dizermos que iríamos fazer o trajeto a pé, pelo simples fato de o motorista dizer: “Vocês são os primeiros turistas aqui nos últimos três meses, então eu levo vocês de graça mesmo, é melhor do que ficar sem fazer nada”.

Vendo de fora o que acontece na Síria, a primeira coisa que vem à cabeça é uma comparação com o que aconteceu com o Mubarak, no Egito, e com o Khadafi, na Líbia. Não sou especialista no assunto, mas o que me parece é que são situações bem diferentes. O al-Assad tem o apoio de muita gente por lá, pelo menos por enquanto. Os protestos contra ele se concentram em algumas regiões, mas ainda não é uma coisa generalizada. Por onde passei, é impressionante o número de cartazes e placas espalhados com a foto do presidente, embora eu imagine que em alguns lugares as pessoas colocam isso muito mais por obrigação e por medo do que propriamente por suporte a ele.
Bashar al-Assad está no comando da Síria desde 2000, após a morte do pai, Hafez al-Assad, que foi presidente de 1971 até então. As revoltas contra a política do ditador começaram em março de 2011 e até agora, segundo a ONU, mais de 4.000 pessoas já morreram.
Na prática mesmo, apesar da dificuldade na comunicação, não tivemos grandes problemas para encontrar hotéis, para pegar ônibus, para comer em restaurantes. Até mesmo cerveja nós conseguimos comprar em diversos lugares, apesar de os muçulmanos serem proibidos de consumir bebida alcoólica. A única coisa que está realmente afetada é o uso do cartão de crédito internacional, tanto para sacar dinheiro quanto para fazer compras. Com o embargo econômico dos Estados Unidos, não está mais funcionando por lá nenhum cartão de fora do país, seja Visa ou Mastercard. Tentei sacar dinheiro no caixa eletrônico algumas vezes, mas nada feito. Como eu já sabia disso, tinha levado cash mesmo, um pouco em libras sírias e um pouco em euro. Outra dificuldade por lá é no acesso à internet. Sites como Hotmail, Gmail, Facebook e Twitter são bloqueados pelo governo, apesar de existirem algumas lanhouses que dão um jeito de burlar isso.

Mesmo nos checkpoints militares que passamos nas estradas, não houve perturbações. Apenas checagem de passaporte e breves perguntas sobre o motivo da viagem. E por falar em passaporte, aí vai uma grande vantagem de ser brasileiro. Ficou muito evidente que ao saberem que éramos do Brasil, a preocupação deles acaba. A imagem de paz do nosso país ajuda bastante. Era falar em Brasil, que vinham sorrisos, brincadeiras e, claro, citações ao samba, ao futebol e a Ronaldinho, Kaká e companhia.

Apesar de ter sido tudo bem tranquilo, poderia ter sido muito complicado já desde a imigração. Aí vai uma boa sacada que eu tive antes mesmo da viagem. Tirei o visto sírio, que é obrigatório, aqui em São Paulo e quando preenchi o formulário não coloquei que eu era jornalista. Meti um administrador de empresas no papel. Tiro certo. Se eu tivesse colocado jornalista, eu não teria entrado no país. Ou, no mínimo, teria vários problemas. Quando cruzei a fronteira, vindo da Turquia, foi a única pergunta feita incisivamente pelo oficial de imigração: Qual a sua profissão? Ficou claro a preocupação e a censura que o governo local está fazendo com a mídia internacional por causa da situação no país. Vale citar que com o visto tirado no Brasil, por 78 reais, não é preciso desembolsar mais nada na entrada à Síria, mas paga-se 500 pounds sírios (7 euros) na saída do país.
Bom, mas e o que tem de bom para fazer na Síria? No próximo post escrevo mais detalhadamente sobre as cidades que visitei, costumes e atrações turísticas. Antes, deixo dois links aqui bem interessantes. O primeiro é sobre o relato à “Folha de S. Paulo” de um jornalista brasileiro que foi preso na Síria. Impressionante! ( http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1008643-bem-vindo-a-siria-desculpe-por-prende-lo.shtml ). O segundo é uma entrevista da ABC com o presidente Bashar al-Assad. Vale assistir! ( http://abcnews.go.com/International/bashar-al-assad-interview-defiant-syrian-president-denies/story?id=15098612#.TuJy3WMk67s ).
Salaam Aleikum!

Legendas: 1) Cartazes com foto do presidente Bashar al-Assad estão espalhados pelas ruas e prédios da Síria - 2) Apesar dos conflitos, vida segue normal em Damasco, como se vê no Souq al-Hamidiyya - 3) Já na turística Palmyra virou uma cidade fantasma, as ruas estão desertas - 4) Mesquita Umayyad, a maior do país, em Damasco - 5) Citadel, em Aleppo - 6) Campo de refugiados sírios, perto da cidade de Antakya, na Turquia, logo depois da fronteira